

Introdução
Em 13 de julho de 1975, a vila ribatejana de Rio Maior tornou-se palco de um dos episódios mais marcantes do chamado “Verão Quente” pós-Revolução de Abril. Nesse dia, milhares de agricultores e populares mobilizaram-se para travar uma tentativa de ocupação comunista do seu Grémio da Lavoura – ação que culminou no *assalto às sedes locais do Partido Comunista Português (PCP) e da Frente Socialista Popular (FSP)*. Este relatório aprofunda, de forma cronológica e contextual, os eventos de 13 de julho de 1975 em Rio Maior e as suas repercussões político-sociais imediatas. Mapearemos as figuras-chave envolvidas – desde líderes nacionais do MFA (Movimento das Forças Armadas) e do PCP, até protagonistas locais ligados ao Grémio da Lavoura e associações agrícolas – com perfis e referências. Analisaremos especificamente o papel de Joaquim da Nazaré Gomes, destacado organizador local, e entenderemos por que o movimento dos agricultores ganhou tanta força (passando de uma tensão local a episódio nacional) e por que mais tarde perdeu ímpeto. Também será contextualizada a influência externa, nomeadamente o cenário da Guerra Fria e da influência soviética em Portugal em 1975, avaliando a ideologia do PCP, os receios internacionais de uma deriva comunista e possíveis ligações a Moscovo – com suporte de telegramas diplomáticos e relatórios desclassificados. Por fim, atualizaremos a narrativa até os dias de hoje, discutindo a memória institucional do evento (comemorações, papel da CAP e do antigo SNA) e os desafios atuais no mundo rural português – desde heranças da reforma agrária até questões de sustentabilidade e coesão territorial – bem como a reação da sociedade portuguesa a esses desafios.
I. Cronologia Detalhada dos Acontecimentos em Rio Maior (13 de julho de 1975)
Antecedentes: Nos meses que antecederam julho de 1975, Portugal vivia forte tensão entre projetos políticos opostos, num contexto revolucionário. No campo, multiplicavam-se ações promovidas pela esquerda radical – ocupações de terras e tomada de cooperativas agrícolas, sobretudo no Sul latifundiário, impulsionadas pelo PCP e aliados. À medida que estas ações se expandiam do Alentejo para o Ribatejo, crescia o alarme entre agricultores médios e grandes do Centro/Norte, regiões de minifúndio e tradição católica, receosos da instauração de uma “reforma agrária” coletivista nas suas propriedades. Rio Maior, situado a poucos quilómetros a norte do Tejo (fronteira histórica entre o Sul revolucionário e o Norte “reacionário” naquele verão), era um caso simbólico: nas eleições de 1975 o PCP ali obtivera apenas cerca de 5% dos votos, ficando em 4º lugar, ao passo que em concelhos vizinhos a sul (como Alpiarça ou Coruche) o PCP vencera ou ficara próximo do PS com 20–58% dos votos. Ou seja, Rio Maior era uma “fronteira” geográfica e política – a última zona do Ribatejo resistente à influência comunista, onde se encontravam 3 mil agricultores associados ao Grémio local e organizados desde 1974 numa Associação de Produtores Agrícolas (APA) própria.
Plano de ocupação e fuga de informação: No início de julho de 1975, forças próximas do PCP planejaram assumir o controle do Grémio da Lavoura de Rio Maior. Para tal, a Liga dos Pequenos e Médios Agricultores de Alpiarça – uma organização de pequenos agricultores conotada com o PCP num concelho vizinho – convocou uma reunião plenária em Rio Maior, visando “ocupar” as instalações e recursos do Grémio. Importa notar que, após a Revolução, muitos Grémios (instituições do antigo regime) estavam em processo de liquidação e reestruturação; no de Rio Maior havia sido nomeada uma comissão liquidatária multipartidária, sem hegemonia comunista. A tentativa da Liga de Alpiarça, portanto, representava uma “dupla ingerência” na ótica local: tanto por vir gente de fora do concelho impor-se, como por ser articulada por um partido minoritário naquela região. Rumores espalharam-se de que essa reunião “seria uma golpada comunista” para tomar posse de um órgão da lavoura local, nas costas dos milhares de agricultores associados. Essa perceção foi decisiva: conforme descreve Joaquim da Nazaré Gomes (então agricultor de Rio Maior), “não era só por serem pessoas ligadas ao PCP… mas também porque pessoas estranhas ao concelho não teriam discernimento para lidar com as necessidades agrícolas locais”. Em suma, via-se a iniciativa como ilegítima e potencialmente lesiva aos interesses dos produtores rio-maiorenses.
Mobilização dos agricultores (véspera e madrugada de 13/7): Na véspera, 12 de julho de 1975, ocorreu uma fuga de informação – provavelmente algum contacto na administração ou simpatizante local alertou os líderes agrícolas de Rio Maior. Dois agricultores da APA, ao tomarem conhecimento do plano, passaram palavra entre os colegas e convocaram todos para resistir. Rapidamente a notícia se espalhou pelas aldeias vizinhas e, na manhã de domingo, 13 de julho, cerca de 300 agricultores já se concentravam diante das instalações do Grémio da Lavoura, determinados a protegê-las. À medida que as horas avançaram, mais gente da região – pequenos, médios e grandes proprietários, familiares, comerciantes e populares solidários – afluía à vila. “Milhares de pessoas uniram-se aos agricultores”, relata a imprensa local. Muitos vieram em tratores ou camiões agrícolas, numa autêntica “marcha sobre Rio Maior” ao contrário: agora eram os rurais do Norte a mobilizarem-se para travar a investida revolucionária que subia do Sul.
Enfrentamento e assalto às sedes do PCP/FSP (13/7): A reunião convocada pela Liga de Alpiarça estava marcada para o próprio dia 13/7. Quando os grupos de Alpiarça e outros concelhos chegaram para ocupar o Grémio, depararam-se com a resistência organizada. Os agricultores locais, muitos munidos de paus, forquilhas e da famosa “moca de Rio Maior” (um cacete de madeira concebido por um tal Abílio “das Lenhas” especialmente para a ocasião) bloquearam o acesso. O confronto escalou: houve empurrões e troca de agressões “à paulada”. Superados em número e surpreendidos, os militantes comunistas e seus aliados viram-se cercados. Em clima de grande tensão, a multidão insurgida decidiu levar adiante uma retaliação simbólica: dirigiu-se à sede local do PCP (o “Centro de Trabalho” comunista) e invadiu as suas instalações, destruindo mobiliário, documentos e propaganda. O mesmo aconteceu à pequena sede da FSP (um grupúsculo socialista de esquerda) – ambas ficaram “desguarnecidas” e foram saqueadas e vandalizadas. Testemunhos indicam que alguns militantes comunistas presentes foram espancados durante o assalto, e outros fugiram para se esconder nas redondezas, temendo pela vida. As bandeiras vermelhas com foice e martelo foram arrancadas e queimadas num ato de catarse coletiva. Assim se consumou o “Dia do Agricultor Livre”, como ficaria conhecido localmente, marcando a primeira ocorrência, no Portugal continental revolucionário, de uma tomada violenta de sede do PCP por populares anticomunistas.
Intervenção militar (tarde de 13/7): Diante do tumulto crescente, as autoridades revolucionárias tentaram reagir. Tropas do Regimento de Infantaria Nº5 (RI5) de Caldas da Rainha, unidade militar próxima, foram destacadas para o local. Porém, sua chegada deu-se apenas algumas horas depois dos fatos principais, quando os ânimos já haviam quase transbordado. Os soldados do RI5 montaram segurança e conseguiram serenar a situação sem uso de força, atuando mais como força de contenção e separação dos campos. Notavelmente, não houve detenções em massa ou repressão violenta dos líderes dos agricultores – possivelmente porque muitos militares locais simpatizavam mais com os manifestantes do que com os ocupantes comunistas. O próprio comandante das tropas em Santarém argumentou ao COPCON (o comando operacional controlado pela esquerda) que “não possuía meios nem preparação” para esse tipo de missão de repressão interna, deixando claro seu desengajamento. Essa ausência de intervenção punitiva imediata seria crucial: a percepção de impunidade reforçou a confiança dos agricultores insurgentes. Na prática, ao fim do dia 13 de julho, Rio Maior permanecia sob controle dos lavradores, com o Grémio protegido e as forças de esquerda expulsas. As estradas foram patrulhadas por piquetes populares que revistavam carros à procura de militantes comunistas forasteiros e queimavam exemplares de jornais “revolucionários” vindos de Lisboa. A transição de uma escaramuça local para uma mobilização vitoriosa e tolerada foi evidente.
Repercussões imediatas (14/7 e dias seguintes): No dia seguinte aos confrontos, a notícia espalhou-se rapidamente pelo país, causando reações inflamadas de ambos os lados. A imprensa alinhada à esquerda em Lisboa – jornais controlados pelo Conselho da Revolução e emissoras de TV e rádio sob influência comunista – retratou os acontecimentos de Rio Maior de forma hostil. Manchetes urbanas chamaram os agricultores de “arruaceiros” e atribuíram o tumulto a “manobras reaccionárias de grandes latifundiários e autoridades religiosas”, insinuando que os camponeses tinham sido manipulados pela Igreja e pelos ricos para desafiar a Revolução. Tais comentários enfureceram ainda mais a população local. Em Rio Maior, ao lerem nos jornais esse retrato depreciativo, os moradores revoltaram-se novamente a 14 de julho: grupos de populares interceptaram as carrinhas distribuidoras e destruíram todos os exemplares de jornais de Lisboa que encontraram, num protesto contra a “mentira” veiculada. Formaram-se barricadas espontâneas nas entradas da vila e estradas regionais, impedindo circulação de quem fosse identificado como emissário ou simpatizante comunista. Segundo relatos, até uma agência bancária local foi cercada por manifestantes, que bloquearam a entrada de funcionários suspeitos de ligações ao PCP, num exemplo de justiça pelas próprias mãos.
Sem reação eficaz do governo central ou das forças de segurança – COPCON, 5ª Divisão do MFA e outras estruturas militarizadas de esquerda mostraram-se incapazes ou indispostas de conter o movimento em Rio Maior – o feito dos agricultores rapidamente inspirou outros concelhos. Nas semanas seguintes, essa “vaga de violência popular anticomunista” alastrou-se pelo Centro e Norte de Portugal. De meados de julho a agosto de 1975, mais de 80 sedes do PCP, de sindicatos controlados pela esquerda e de pequenos partidos revolucionários foram assaltadas ou incendiadas, desde o Ribatejo até o Minho. Em pelo menos 58 municípios (quase todos na metade norte do país), registaram-se manifestações de grande dimensão contra símbolos comunistas. Em muitos locais, multidões de 2 a 3 mil pessoas cercaram sedes por horas; houve tiroteios pontuais onde militantes do PCP tentaram resistir e casos de arremesso de material pelas janelas e queima pública de bandeiras e panfletos comunistas. Somente em julho de 1975, 86 ações violentas de cariz anticomunista foram contabilizadas, incluindo 33 assaltos a centros de trabalho do PCP (além de dezenas de bombas, incêndios e agressões) – todas “a reboque” do catalisador de Rio Maior. Em agosto, quando a crise do V Governo Provisório (chefiado por Vasco Gonçalves) atingiu o auge, esses números mais que dobraram: o PCP denunciou 153 atos “terroristas” só em agosto, com 82 novas invasões destruindo 55 sedes do PCP e 25 do aliado MDP/CDE. Muitas dessas ações de agosto ocorreram no contexto de manifestações de agricultores contra a Lei da Reforma Agrária então em debate, e foram por vezes protegidas por militares moderados enviados para evitar confrontos com os manifestantes de direita.
Consequências políticas: O levantamento de Rio Maior rapidamente transcendeu a questão local e assumiu caráter de reivindicação política nacional contra o governo dominado pela esquerda. Os agricultores ribatejanos e nortenhos passaram a exigir publicamente a demissão do Primeiro-Ministro Vasco Gonçalves (acusado de ser influenciado pelo PCP) e o fim das ocupações de terras. Nas palavras de um historiador, “pela primeira vez, uma ação local desencadeou uma oposição nacional ao governo de Vasco Gonçalves”. A mobilização agrícola tornou-se assim um componente-chave da frente anticomunista que se articulava no verão de 1975, ao lado dos partidos moderados (PS de Mário Soares e PPD de Sá Carneiro) e de setores das Forças Armadas desiludidos com os rumos da Revolução. Em 20 de julho de 1975, apenas uma semana após Rio Maior, o clima político era tão grave que a CIA alertava Washington sobre o risco de violência generalizada em Portugal – notando um “novo vigor dos moderados” e que Gonçalves e o PCP estavam “em posição exposta” enquanto Moscou observava alarmada. De facto, a crise culminou com a queda de Vasco Gonçalves no final de agosto, substituído em setembro por um governo mais moderado (VI Governo). Pode-se argumentar que a “rebelião de Rio Maior” contribuiu para esse desfecho, ao demonstrar que uma parcela significativa da população (os pequenos e médios proprietários rurais) não aceitaria passivamente uma viragem comunista e que até mesmo a autoridade do MFA era contestável quando confrontada com mobilização popular massiva.
Adicionalmente, Rio Maior ganhou um forte significado simbólico. O gesto dos agricultores ribatejanos ficou conhecido como o dia em que o avanço da extrema-esquerda foi travado “pela base”. De 1976 a 1985, o Município de Rio Maior instituiu 13 de Julho como feriado municipal – o “Dia do Agricultor Livre” em homenagem à união cívica dos lavradores em defesa da sua terra e da democracia pluralista. Uma avenida principal da cidade foi batizada “Avenida 13 de Julho”, perpetuando na toponímia local a memória desses eventos. Ainda hoje, passado meio século, os rio-maiorenses recordam com orgulho aquele dia de 1975 em que – nas palavras de José Valério Colaço, fotógrafo que registou a cena – *“cidadãos, trabalhadores e proprietários se uniram na defesa da sua terra, do seu país e da democracia livre”*.
II. Protagonistas e Figuras-Chave
A seguir, destacamos as principais figuras envolvidas nos acontecimentos, dividindo-as entre o nível nacional (membros do MFA, líderes partidários e governantes) e o nível local/regional (dirigentes agrícolas de Rio Maior e arredores, tanto do lado dos agricultores como do lado das organizações de esquerda). Em cada caso, indica-se o papel desempenhado em julho de 1975, bem como informações relevantes posteriores.
A. Figuras Nacionais (MFA, Governo Provisório e Partidos)
Vasco Gonçalves – Oficial do MFA (General de Engenharia) e Primeiro-Ministro à data (chefiava o V Governo Provisório, de orientação esquerdista). Próximo do PCP, implementou nacionalizações e a Lei da Reforma Agrária. Após Rio Maior, foi crescentemente acusado por moderados de querer um “governo comunista total”. Em consequência da pressão popular (onde se incluem as manifestações de agricultores) e de divisões nas Forças Armadas, viria a ser demitido em 30 de agosto de 1975.
Álvaro Cunhal – Secretário-Geral do PCP, principal partido comunista português. Marxista-leninista alinhado a Moscovo, via na crise de 1975 a chance de avançar para um “poder popular” socialista. Ideólogo do PCP, Cunhal apoiou as ocupações de terras no Sul e considerou Rio Maior um ato contra-revolucionário. Segundo documentos do partido, após o assalto de Rio Maior ocorreu uma “vaga de 86 atos terroristas” contra sedes comunistas, marcada por violência de grupos “fascistas e reaccionários” organizada por redes spinolistas. Cunhal denunciou esses ataques como terrorismo dirigido pelo MDLP/ELP (movimentos clandestinos de direita ligados ao ex-Presidente Spínola) e não como genuína ação espontânea – visão sustentada na obra A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, em que minimiza o caráter popular dos motins e destaca o papel de oficiais como Alpoim Calvão na coordenação da contra-ofensiva.
Movimento das Forças Armadas (MFA) – O MFA era heterogéneo em 1975, dividido entre uma ala radical (influenciada pelo PCP e representada por oficiais como Otelo Saraiva de Carvalho, comandante do COPCON, e pela 5ª Divisão de Educação do Exército) e uma ala moderada (liderada por oficiais como Melo Antunes e, emergentemente, Ramalho Eanes). Otelo Saraiva de Carvalho, enquanto chefe do COPCON, tentou responder aos “focos reacionários” mas viu comandantes locais recusarem-se a reprimir Rio Maior. Já Ernesto Melo Antunes e outros moderados enxergaram nos eventos um alerta contra os excessos esquerdistas. No Conselho da Revolução, órgão cimeiro do MFA, discutiu-se a situação: em novembro de 1975, representantes dos agricultores de Rio Maior (ver seção local) foram ouvidos em Belém, e há indicação de que o Conselho considerou concessões às suas exigências. Isso coincidiu com o fortalecimento dos moderados militares que culminaria no golpe de 25 de Novembro de 1975 – que restabeleceu a ordem democrática e onde Rio Maior, mais uma vez, desempenhou papel simbólico de “sinal verde” (como descrito adiante).
Mário Soares – Líder do Partido Socialista (PS) e ministro demissionário em 1975, tornou-se opositor frontal do PCP e de Vasco Gonçalves após retirar o PS do governo em agosto. Não esteve diretamente envolvido em Rio Maior, mas seu partido apoiou moralmente os agricultores. Soares fez diligências internacionais denunciando o perigo de um regime comunista em Portugal, obtendo apoios financeiros secretos de partidos social-democratas europeus para fortalecer o PS. Em janeiro de 1976, Soares diria nos EUA que “não desejamos tornar-nos comunistas”, recebendo de Kissinger a resposta célebre: “Nem Kerensky desejava” (alusão ao líder moderado derrubado pelos bolcheviques). Esse comentário ilustra bem os receios da época e a pressão sobre Soares para conter os comunistas – objetivo que a mobilização de Rio Maior e congéneres veio facilitar, fornecendo legitimidade popular à causa anticomunista que o PS e o PPD defendiam.
Francisco Sá Carneiro – Líder do PPD (Partido Popular Democrático), de centro-direita, também retirou seu partido do governo em julho de 1975, passando à oposição. Documentação histórica indica que militantes do PPD em Rio Maior tiveram participação ativa na organização da resistência de 13 de julho. Ou seja, o PPD local mobilizou agricultores e caciques regionais contra a “usurpação” do Grémio. Sá Carneiro condenou publicamente a Reforma Agrária e o PCP, e o PPD apoiou a fundação de estruturas paralelas de agricultores (como a APA e depois a CAP). Posteriormente, um dos principais dirigentes do movimento, José Manuel Casqueiro, seria eleito deputado pelo partido (PSD) no pós-1975. Isso demonstra a interligação entre o movimento dos agricultores e os partidos moderados emergentes.
António de Spínola – General e primeiro Presidente pós-25 de Abril (demitiu-se em setembro de 1974), encontrava-se no exílio em 1975, mas articulava à distância a resistência contra a guinada comunista. Spínola liderou uma rede clandestina, o MDLP (Movimento Democrático de Libertação de Portugal), que financiou campanhas de desestabilização (e.g. bombismo). O PCP acreditava que o MDLP orquestrara muitos ataques de julho-agosto 1975. Um jornalista alemão, GunterWallraff, investigou o MDLP e entrevistou um operacional que afirmou que a extrema-direita controlava associações de agricultores em locais como Rio Maior, Coruche e Santarém. Embora não haja consenso se Rio Maior foi espontâneo ou incentivado pelo MDLP, é fato que setores spinolistas e da direita católica apoiaram e depois capitalizaram esses movimentos (membros do MDLP teriam fornecido armas e logística a grupos do Norte). O nome de Alpoim Calvão, conhecido oficial ligado a Spínola, é citado pelo PCP como responsável por coordenar ações “terroristas” contra comunistas até 25 de Novembro. Assim, no topo da cadeia reacionária de 1975, Spínola representava a esperança de “virar o jogo” – algo que se concretizaria somente com a ação militar moderada de Novembro, mas que contou com este fermento local prévio.
Frente Socialista Popular (FSP) – Organização política de esquerda não comunista, liderada por Manuel Serra, que fazia oposição ao PS de Soares pela esquerda. Embora de inspiração socialista, a FSP aliou-se taticamente ao PCP em 1975 contra os “reacionários”. Em Rio Maior, a sede da FSP foi igualmente destruída pelos populares, mostrando que estes viam qualquer força alinhada à ala radical como alvo. Manuel Serra protestou contra as violências, mas seu movimento era pequeno. A presença da FSP local ilustra que, para os agricultores revoltosos, PCP e seus satélites eram indistintos, todos representando a ameaça “vermelha”.
B. Figuras Locais e Regionais (Líderes Agrícolas e Autoridades)
Joaquim da Nazaré Gomes – Agricultor da região de Rio Maior (natural do concelho, de família rural). Foi um dos principais organizadores e porta-vozes do movimento de 13 de Julho. Segundo seu próprio testemunho, estava entre os primeiros a receber a informação da planificada ocupação e a conclamar os demais agricultores para reagir. Durante os eventos, agiu como coordenador local, ajudando a articular a defesa do Grémio e posteriormente servindo de elo com as autoridades. Nazaré Gomes tornou-se um interlocutor institucional: em 24 de novembro de 1975, integrou a delegação de quatro agricultores (ao lado de José Manuel Casqueiro, Luís Madeira e Guilherme Jacinto) que partiu de Rio Maior para reunir-se com o Conselho da Revolução no Palácio de Belém, levando as preocupações do setor rural. Nessa reunião maratónica (que durou até às 6h da manhã de 25/11), apresentaram um caderno de reivindicações em 13 pontos e ouviram promessas de análise pelo governo. Horas depois, eclodiu o contragolpe de 25 de Novembro, que Nazaré Gomes celebra como tendo “finalmente restituído a liberdade e a democracia prometidas em 25 de Abril”. Em entrevistas posteriores, Joaquim Nazaré Gomes revelou uma visão autocrítica: admitiu que houve excessos de violência contra os militantes comunistas de Rio Maior, “que não eram os culpados” do conflito, notando até que mantinha boas relações pessoais com quase todos eles. Após 1975, continuou ativo na defesa dos agricultores – consta que participou na direção da associação local e escreveu crónicas na imprensa (uma delas no Correio da Manhã explicando a mobilização). A sua figura é lembrada em Rio Maior como símbolo da resistência camponesa. (Ver seção III adiante para um perfil completo de Joaquim da Nazaré Gomes.)
Eng. José Manuel Casqueiro – Engenheiro técnico agrário (formado na Escola de Regentes Agrícolas de Santarém), natural da região vizinha (Várzea, Santarém). Em 1975 trabalhava numa brigada técnica agrícola até ser afastado por motivos políticos. Tornou-se então líder destacado dos agricultores ribatejanos contra a Reforma Agrária, tendo papel central em Rio Maior. Casqueiro era dirigente da APA – Associação de Produtores Agrícolas da Região de Rio Maior, organização que reunia cerca de 2.500 agricultores e já fora formalizada em novembro de 1974. Ele esteve entre os estrategas da resistência de 13 de Julho e, sobretudo, da articulação do movimento a nível nacional. Foi Casqueiro quem discursou em nome dos agricultores em vários comícios posteriores e na comemoração do 25 Nov em Rio Maior. Desempenhou um papel chave na fundação da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP): a CAP teve seu embrião numa magna reunião de agricultores em Rio Maior e foi formalizada em 25 de novembro de 1975 (com escritura em janeiro de 1976) justamente sob impulso de Casqueiro e colegas. José Manuel Casqueiro tornou-se o primeiro Secretário-Geral da CAP, cargo que ocuparia por 24 anos, afirmando-se como um dos mais influentes representantes do setor agrícola no Portugal democrático. Também serviu como deputado (independente nas listas da AD/PSD nos anos 1980). Católico praticante e assumidamente de centro-direita, Casqueiro foi figura controversa pela combatividade – seus apoiantes creditam-lhe a defesa intransigente dos agricultores, enquanto detratores o viam quase como um “poder paralelo” no Ministério da Agricultura nas décadas seguintes. Faleceu em 2003, sendo lembrado como “um brigão no bom sentido da palavra”, cuja atuação “impediu os objetivos de ocupação de muitas propriedades” e ajudou a estabilizar a jovem democracia contra o radicalismo.
Luís Madeira e Guilherme Jacinto – Agricultores da região (um deles residente em Setúbal posteriormente, outro talvez local), foram colaboradores próximos de Casqueiro e Nazaré Gomes. Ambos integraram a já citada delegação de 4 representantes que negociou com o Conselho da Revolução em novembro de 1975. Atuaram como líderes associativos: presume-se que ocupassem funções diretivas na APA ou em estruturas emergentes do movimento. São nomes menos mediatizados nacionalmente, mas constam na memória local e nos documentos da época como vozes ativas dos agricultores. Por exemplo, Guilherme Jacinto é mencionado em redes sociais locais ao lado de Nazaré Gomes, e Luís Madeira é lembrado por ter aparecido “de barba de três dias” em fotos dos acontecimentos. Junto com Casqueiro e Nazaré, compunham o núcleo duro que articulou Rio Maior com outros concelhos.
Adelino da Costa Bernardes – Importante agricultor de Rio Maior, era na época um dos líderes naturais da classe agrícola local (possivelmente presidiu a cooperativa agrícola ou esteve na comissão do Grémio). Embora não apareça em fontes escritas consultadas, sua relevância fica clara pelo fato de ser homenageado em 2025 no 50º aniversário dos eventos. Foi escolhido para um tributo póstumo no encontro comemorativo, indicando que teve papel destacado em 1975 e depois. Bernardes simboliza a memória viva dos protagonistas locais, muitos dos quais se mantiveram na atividade agrícola e em funções comunitárias nas décadas seguintes.
Abílio “das Lenhas” – Cidadão de Rio Maior, não um líder formal mas personagem folclórica do episódio. Foi o artesão que improvisou a célebre “Moca de Rio Maior”, um cacete de madeira apresentado poucos dias antes dos confrontos e que se converteu em símbolo da resistência campesina local. A moca, exibida pelos agricultores como troféu após expulsarem os comunistas, deu nome ao acontecimento no imaginário popular e na imprensa (“a moca de Rio Maior” foi expressão usada para designar o levantamento). Abílio ganhou este apelido por trabalhar com lenha; sua criação representa a astúcia e a preparação prévia dos moradores para o embate que pressentiam.
Líderes locais do PCP e aliados – Do lado dos derrotados em Rio Maior, contavam-se alguns quadros locais: por exemplo, João Narciso, militante comunista da região, e João Damiano, ambos citados em entrevistas posteriores. Narciso recorda o terror vivido (chegou a esconder-se com a esposa até conseguir carona após um jogo de futebol local). Damiano relatou que, ao tentar retornar a casa no fim daquele dia, foi perseguido e insultado, tendo de se refugiar. Ou seja, os comunistas rio-maiorenses – que até então se relacionavam socialmente “bem com quase todos”, segundo Nazaré Gomes – viraram alvo de suspeita e retaliação, mesmo não sendo os mentores do plano de ocupação. Muitos deles se viram obrigados a sair da terra natal por um tempo, tal o clima hostil. Também estiveram envolvidos na tentativa frustrada de ocupação membros da Liga de Pequenos e Médios Agricultores de concelhos vizinhos (Alpiarça, Almeirim, Cartaxo, etc.), possivelmente dirigentes locais dessas organizações agrárias pró-PCP. Seus nomes não ficaram registados na grande história, mas foram atores do confronto. A título de exemplo, Alpiarça era então presidida pelo comunista Francisco Bento Gonçalves (líder local da Liga), e Coruche pelo militante José Júdice – figuras que apoiavam a Reforma Agrária no Ribatejo. Embora não haja confirmação se estavam pessoalmente em Rio Maior, suas bases estavam.
Autoridades locais – Incluem-se aqui o administrador do concelho ou presidentes da Câmara e da Junta em 1975. Após o 25 de Abril, muitos municípios ficaram sob gestão de comissões administrativas nomeadas pelos novos poderes. Não identificamos a pessoa exata em Rio Maior na altura, mas é provável que as autoridades locais tenham ficado passivas ou até solidárias com os agricultores durante o incidente. Não houve relatos de polícia de choque agindo nem de detenções em Rio Maior, o que sugere que a GNR local ou não interveio ou alinhou-se tacitamente com a população. A Guarda Nacional Republicana no Ribatejo tinha muitos elementos oriundos de meios rurais e conservadores, e de fato não reprimiu as ações (o que foi notado pelo PCP como cumplicidade). É possível que o Comando Distrital de Santarém da GNR tenha deliberadamente mantido as forças nos quartéis. Essa conivência das autoridades locais e regionais foi fundamental para o êxito temporário do movimento.
Em síntese, de um lado estavam os líderes agrários moderados (Casqueiro, Nazaré, etc.), apoiados por militantes de partidos democráticos locais (PPD, Centro Democrático Social – CDS, e também setores do PS mais moderado) e pela Igreja Católica (padres rurais incentivaram a defesa da “terra e da família” contra o comunismo, embora não mencionados acima, a influência eclesiástica permeava a sociedade – de notar que Casqueiro foi dirigente da Juventude Agrária Católica). Do outro lado, estavam os ativistas comunistas e aliados tentando implementar localmente as diretivas revolucionárias de Lisboa. O choque desses atores, em solo ribatejano, definirá os rumos daquele verão.
III. O Papel de Joaquim da Nazaré Gomes – Perfil e Participação no Movimento
Identificação e origem: Joaquim da Nazaré Gomes é um filho de Rio Maior, agricultor de profissão, nascido presumivelmente nas décadas de 1930-40 (à data dos eventos teria provavelmente entre 30 e 40 anos). Cresceu num meio rural e conhecia de perto as preocupações dos agricultores locais. Seu nome de família (Gomes) e o apelido “da Nazaré” sugerem raízes na região (possivelmente família originária da freguesia de Nazaré ou proximidades). Ele despontou como liderança natural dos produtores logo após o 25 de Abril de 1974. Documentos indicam que foi membro ativo da APA – Associação de Produtores Agrícolas da região de Rio Maior, fundada formalmente em novembro de 1974 para defender os interesses da lavoura local. Assim, quando a crise revolucionária se intensificou, Joaquim Nazaré já tinha alguma experiência organizativa e trânsito entre os colegas agricultores.
Participação em 13 de Julho: Na véspera do incidente, Joaquim da Nazaré Gomes esteve entre os primeiros a saber da reunião convocada pela Liga de Alpiarça. Em entrevista, ele conta que tomou conhecimento no dia anterior e imediatamente, junto com outro colega, mobilizou os agricultores via passa-palavra. Isso implica que foi um aglutinador, fazendo telefonemas ou visitas para alertar dezenas de lavradores a acorrerem ao Grémio logo de manhã cedo. No próprio dia 13, Nazaré Gomes atuou como coordenador de base: testemunhas o descrevem orientando grupos, acalmando ânimos e ao mesmo tempo encorajando a firmeza para não ceder o Grémio. Ele conhecia pessoalmente muitos dos participantes (afinal, eram associados da APA e vizinhos) e detinha legitimidade para liderar, mesmo sem cargo político formal.
Durante o confronto, não há registro de que tenha se envolvido em violência direta – possivelmente ocupou-se de tarefas organizacionais. Por exemplo, quando se decidiu marchar até as sedes do PCP/FSP, é plausível que Joaquim da Nazaré tenha assessorado moderação para evitar vítimas, embora a turba acabasse extravasando. Sua voz ponderada transparece anos depois ao refletir que os comunistas locais não mereciam o tratamento duro que sofreram. Isso sugere que mesmo na altura ele pudesse ter tentado evitar agressões pessoais mais graves (ainda que sem sucesso total).
Líder e porta-voz pós-evento: Logo após 13 de Julho, Joaquim Nazaré Gomes emergiu como porta-voz do movimento dos agricultores de Rio Maior. Quando jornais nacionais buscaram “o outro lado” da história, foi ele quem deu declarações (há referência a uma crónica de sua autoria no Correio da Manhã, onde esclarece a versão dos agricultores). Nessa crónica, Nazaré Gomes explicou que a mobilização se deu espontaneamente entre os lavradores do concelho ao saberem do plano de ocupação, desmentindo a narrativa de que foram manipulados por latifundiários ou padres. Também enfatizou que não queriam anarquia, e sim proteger as suas instituições e modos de vida. Essa habilidade de comunicação indica que possuía boa articulação verbal e consciência política.
No período de agosto a novembro de 1975, Nazaré Gomes esteve profundamente envolvido na consolidação do movimento agrícola a nível nacional. A APA de Rio Maior tornou-se rapidamente ponto de contato com outras associações de proprietários rurais do país – e, conforme o próprio relata, ele ajudou a estabelecer esses contactos inter-concelhios. Foi dessa articulação que nasceu o Secretariado Nacional de Agricultores (SNA), órgão coordenador provisório fundado no segundo semestre de 1975 para unificar as várias associações regionais num esforço comum. Joaquim Nazaré Gomes figurou entre os representantes do então SNA. Em reuniões do SNA (por exemplo, um plenário distrital de agricultores em Santarém a 6 de novembro de 1975), é provável que tenha tomado a palavra para defender os pontos de vista do Ribatejo. No II Plenário Nacional do SNA, discutiu-se inclusive um mapa de regiões agrícolas e 13 pontos de reivindicações (mencionados na reunião com o Conselho da Revolução) – pautas em cuja elaboração Nazaré contribuiu ativamente. Esses “13 pontos” incluíam exigências como suspensão das ocupações, respeito à pequena propriedade, apoio estatal à produção, etc., que refletiam as preocupações trazidas de Rio Maior.
O momento culminante do protagonismo de Joaquim da Nazaré Gomes deu-se na véspera de 25 de Novembro de 1975. Naquele dia 24, realizou-se em Rio Maior uma grande concentração nacional de agricultores, com milhares de participantes, numa demonstração de força do SNA. Dali partiu a já mencionada comitiva de quatro delegados a Belém – e Joaquim era um deles. Segundo as palavras que ele próprio publicou posteriormente, “foi aqui, em Rio Maior, na véspera do 25 de Novembro de 1975, que se deu o sinal necessário para que as forças armadas moderadas avançassem”, referindo-se claramente ao fato de que a mobilização dos agricultores pressionou o Conselho da Revolução e encorajou os oficiais moderados a deflagrarem a operação militar preventiva contra os radicais. Durante a longa reunião noturna no Palácio de Belém (presidida pelo General Costa Gomes e com vários conselheiros presentes), Joaquim Nazaré Gomes defendeu as posições dos agricultores com firmeza, pedindo respostas do governo. Foi-lhes prometido que as reivindicações seriam examinadas nos dias seguintes. Mal sabiam que, no romper da manhã, unidades comandadas por Ramalho Eanes já estavam em marcha em Lisboa para neutralizar as forças da extrema-esquerda, evitando um conflito civil.
Após novembro de 1975, Joaquim da Nazaré Gomes continuou engajado. Quando a CAP se formalizou (início de 1976), ele muito provavelmente integrou seus quadros fundadores, ainda que não em cargos executivos de topo (Casqueiro assumiu como secretário-geral e figuras como Rosado Fernandes e João Machado emergiriam na liderança mais tarde). Entretanto, Nazaré manteve atuação local: registros oficiais mostram que nos anos 2000 ele presidiu empresas e cooperativas na área agrícola e florestal em representação da Associação de Rio Maior. Por exemplo, exerceu a presidência da Federação de Produtores Florestais de Portugal representando a associação riomaiorense. Isso indica sua continuidade como dirigente classista.
Quanto à sua vida pessoal e outros acontecimentos, destaca-se a referência a uma biografia intitulada “Uma vida atribulada: confissão de um crime não cometido” (de Eugénia Frazão) que narra a história de Joaquim da Nazaré Gomes. Não temos detalhes completos, mas o subtítulo sugere que em algum momento ele foi acusado injustamente de um crime. É possível que isso se relacione a episódios posteriores (por exemplo, confrontos agrários em Santarém ou alguma retaliação política). Seja como for, o fato de ter uma biografia publicada reforça a relevância da sua trajetória.
Em suma, Joaquim da Nazaré Gomes emerge como um líder local carismático e moderado, cuja atuação ajudou a canalizar a revolta espontânea dos agricultores para resultados políticos concretos. Foi organizador, negociador e cronista dos eventos. Sua perspectiva equilibra o orgulho de ter resistido ao totalitarismo com a consciência de que excessos ocorreram. Cinquenta anos depois, ele (que ainda é vivo até onde consta, tendo proferido declarações em 2023) continua sendo a memória personificada de 13 de Julho – frequentemente convidado para contar “na primeira pessoa” o que se passou.
IV. Adesão em Massa vs. Perda de Fôlego – Análise do Alcance e Declínio do Movimento
Por que o movimento teve tanta adesão e força?
Vários fatores explicam a forte adesão popular e o poder de mobilização do movimento de Rio Maior, que rapidamente se espalhou a nível nacional:
Defesa da propriedade e modo de vida: Para os agricultores, pequenos e médios proprietários, a perspectiva de verem suas terras coletivizadas ou seus órgãos de classe controlados pelo PCP representava uma ameaça existencial – econômica, cultural e até espiritual. Em muitas aldeias do Centro e Norte, corria o boato de que os comunistas iriam “tirar as terras e o gado” e talvez perseguir os crentes. Esse medo visceral uniu gente de diferentes estratos sociais do campo. Como resumiu a imprensa local, “defender a sua iniciativa livre e, mais do que a simples agricultura, a cidadania e a democracia foi o que os uniu”. Ou seja, os agricultores acreditavam genuinamente estar a lutar pela liberdade e pela sobrevivência de suas famílias, o que gerou enorme legitimidade interna ao movimento.
Contexto de fronteira ideológica: Conforme já mencionado, Rio Maior situava-se na “linha divisória” entre a zona de influência comunista e a zona anticomunista. Havia um claro sentimento regional de que “daqui para cima, não passam”. Esse caráter fronteiriço mobilizou não só os rio-maiorenses, mas comunidades vizinhas. Comércio local, funcionários públicos médios, padres, todos se juntaram aos lavradores. Cidades próximas como Benedita e Alcobaça enviaram comerciantes e habitantes para apoiar a luta em Rio Maior no próprio 13 de Julho. Relatos indicam que até em Minde, Porto de Mós e Cadaval (já a dezenas de km), populares fizeram barricadas nos dias seguintes, imitando Rio Maior. Essa replicação demonstra que a causa encontrou ressonância sociológica ampla – era vista como a “reação do Norte” (católico, proprietário e conservador) contra a “revolução do Sul” (laica, coletivista e esquerdista).
Mobilização preexistente e organizações: A adesão massiva também foi facilitada porque não surgiu do zero. Desde 1974, a classe agrícola vinha-se organizando: surgiram as Associações Livres de Agricultores (ALA) em vários pontos (Beja, Évora, Santarém etc.), logo suprimidas pelo governo de esquerda, mas que continuaram ativas na sombra. A APA de Rio Maior e outras associações regionais já possuíam centenas ou milhares de membros cadastrados, redes de comunicação (mesmo informais) e lideranças identificadas. Quando o confronto eclodiu, essas estruturas serviram de base de mobilização rápida – por exemplo, em Santarém, o PPD e a APA local convocaram reuniões em solidariedade a Rio Maior logo em seguida, ampliando o alcance do protesto. Essa existência de um “tecido associativo” latente explica como em poucos dias o movimento ganhou dimensão nacional, com encontros de agricultores multiplicando-se de Viana do Castelo ao Ribatejo.
Apoio (explícito ou velado) de instituições tradicionais: A Igreja Católica teve papel importante, embora indireto, na forte adesão do movimento. Paróquias do interior serviram de centros de difusão de mensagens anticomunistas – padres liam sermões alertando contra o “perigo vermelho” e abençoavam a união dos fiéis pela sua terra. No caso concreto de Rio Maior, sabe-se que o pároco local e bispos da região apoiavam os agricultores (um exemplo: D. Manuel Martins, bispo auxiliar de Santarém em 1975, era crítico da violência mas compreendia as queixas dos lavradores). Além disso, a GNR e Polícia locais não obstaculizaram os manifestantes; pelo contrário, muitos agentes eram parentes ou amigos deles. Essa conivência institucional deu confiança: os agricultores sentiram que “ninguém os iria travar” – impressão reforçada quando viram que nem o COPCON os reprimiu. O resultado foi um sentimento de quase impunidade e poder popular: “nada impediu que o movimento de Rio Maior seguisse o seu curso”, constatou o relatório de inteligência do MFA, assinalando a criação de verdadeiras “zonas de poder reaccionário” inalcançáveis à autoridade de Lisboa.
Adaptação tática e efeito-demonstração: O movimento mostrou grande flexibilidade tática. Inicialmente, limitou-se a cercar o Grémio. Diante da inação das autoridades, evoluiu para ataque às sedes partidárias. Depois, face à narrativa midiática contrária, passou a queimar jornais e montar piquetes permanentes. Essa escalada gradativa permitiu atrair mais participantes (cada novo ato – tomar sedes, queimar jornais – galvanizava quem antes estava hesitante). E o êxito em cada etapa serviu de “demonstração de coragem” para outros: comunidades que talvez temessem enfrentar o PCP viram que em Rio Maior fora possível, e sem punição, imitaram. Assim, consolidou-se uma onda de imitação: o jornal O Século referiu que se criara um “padrão de violência” a partir de 13 de Julho, repetido em vilas distantes. Esse efeito contágio maximizou a força do movimento além do foco original.
Convergência de interesses políticos mais amplos: Por trás da adesão popular, estava também a confluência com agendas políticas nacionais. O PS e o PPD, ao saírem do Governo por discordarem do PCP, encontravam nesses protestos um aliado objetivo. Mesmo sem controle direto, moderados e “spinolistas” fomentaram o clima favorável. Emissários de Spínola (MDLP) teriam fornecido dinheiro, materiais propagandísticos anticomunistas e talvez armas a certos grupos nortenhos. Por seu lado, setores moderados do MFA deixaram claro que não interviriam contra os agricultores. Essa convergência entre povo e parte das elites deu ao movimento um lastro político e financeiro que o tornou resiliente e capaz de se manter por semanas, culminando no grande meeting de 24 de Novembro em Rio Maior. Em última análise, o movimento agrícola funcionou como massa de manobra espontânea (no bom sentido) para pressionar pelo afastamento da extrema-esquerda – objetivo que tantos outros (partidos, Igreja, potências ocidentais) também desejavam naquele momento.
Por que o movimento perdeu fôlego posteriormente?
Apesar de seu impacto notável no verão de 1975, o movimento dos agricultores arrefeceu consideravelmente após o final daquele ano. Várias razões explicam por que ele não se perpetuou com a mesma intensidade e acabou mudando de natureza (da rua para a institucionalização):
Mudança do contexto político (intervenção militar moderada): O fator determinante foi o desfecho da crise política a 25 de Novembro de 1975. Quando os militares moderados liderados por Ramalho Eanes e outros venceram o confronto interno e neutralizaram os radicais (prisão de Otelo, desmantelamento do COPCON, etc.), a ameaça imediata de um golpe comunista evaporou. Com a queda de Vasco Gonçalves e a formação do VI Governo Provisório (chefiado por Pinheiro de Azevedo, de linha centrista), os agricultores sentiram que seus principais objetivos haviam sido alcançados: o PCP fora afastado do poder central e as políticas de coletivização seriam revistas. Assim, a motivação para continuar mobilizado nas ruas diminuiu drasticamente – a luta parecera ganha. Como apontou o próprio Joaquim Nazaré Gomes, “finalmente nos foi restituída a liberdade e a democracia” com o 25 de Novembro, ou seja, cessou o estado de necessidade que justificava ações diretas. Após essa virada, o governo (agora incluindo PS e PPD) passou a condenar qualquer desordem, e as Forças Armadas voltaram a apoiar a lei e a ordem, retirando a indulgência que antes beneficiara os manifestantes. Em suma, o movimento perdeu o “inimigo” galvanizador (o risco de ditadura comunista) e perdeu também o vácuo de autoridade que lhe permitia agir impunemente.
Institucionalização e mudança de estratégia: Desde o fim de 1975, a liderança do movimento percebeu que era hora de trocar a mobilização espontânea pela atuação institucional. A fundação da CAP (Confederação dos Agricultores de Portugal), formalizada em janeiro de 1976 em Rio Maior, marcou essa transição. A CAP congregou as várias associações e secretariados regionais (APA, SNA etc.) sob uma entidade reconhecida legalmente, apta a negociar com o governo. Desta forma, a “causa” dos agricultores entrou na via da concertação social e do lobby político, ao invés de continuar nas barricadas. Essa mudança de estratégia foi deliberada: líderes como Casqueiro e Rosado Fernandes decidiram apostar na influência nos gabinetes ministeriais, parlamento e opinião pública, ao invés de ação direta de massas. Com isso, a energia do movimento de base foi canalizada para formas mais convencionais de reivindicação (manifestos, participação em eleições – muitos ativistas candidataram-se por PSD ou CDS –, greves de zelo, etc.). A luta contra a Reforma Agrária seguiu-se, mas já dentro das instituições: pressionando pela alteração da lei. Por exemplo, em 1976 e 1977, a CAP organizou grandes manifestações pacíficas (como a de 100 mil agricultores em Braga, em janeiro de 1976, e protestos em Santarém), até lograr a revisão da lei agrária pelo Ministro António Barreto em 1977. Assim, a radicalidade de 1975 deu lugar a um ativismo de lobby, menos visível porém efetivo.
Repressão e condenação dos excessos: Após a estabilização democrática, houve esforços para punir ou, pelo menos, coibir os remanescentes do terrorismo de direita. O governo de transição e depois os primeiros governos constitucionais (1976 em diante) condenaram explicitamente os assaltos a sedes partidárias. Inquéritos foram abertos para identificar autores de violência grave. Embora muitos casos tenham ficado impunes (até pelo apoio comunitário que blindava os envolvidos), o Estado de Direito recuperado enviou sinal claro: novas ações violentas não seriam toleradas. Por exemplo, a tragédia de Santarém em 6 de Novembro de 1975 – onde um manifestante latifundiário e um militante de esquerda morreram em confrontos – chocou a nação e deixou claro que o próximo episódio poderia degenerar em derramamento de sangue. Isso funcionou como travão psicológico para muitos: não queriam uma guerra civil. Inclusive líderes agrícolas moderados passaram a pedir calma. Registos de reuniões do SNA mostram que alguns oradores preferiram cancelar manifestações planejadas para evitar violência excessiva (há menção que no dia 11 de dezembro de 1975 discutiu-se cancelar um plenário de agricultores previsto, devido à pressão para não exacerbar tensões). Assim, a partir de 1976 a própria CAP evitou associações com atos de força, tentando construir uma imagem respeitável. Esse contexto contribuiu para esfriar a mobilização popular contínua.
Divisões e diversidade de interesses no seio do movimento: No clímax de julho-agosto de 1975, a unidade contra o PCP era forte o suficiente para suplantar diferenças. Porém, após removido o perigo imediato, ressurgiram diferenças internas entre os agricultores. Havia desde “grandes proprietários e lavradores ricos” até “pequenos rendeiros e caseiros pobres” unidos circunstancialmente. Seus interesses de longo prazo nem sempre coincidiam – por exemplo, na discussão sobre subsídios agrícolas ou sobre direitos dos trabalhadores rurais, divergiam. O PCP, ao recuar, tentou capitalizar nessas divisões: reorganizou sindicatos de assalariados rurais (particularmente no Sul) e denunciou a CAP como instrumento dos grandes agrários contra os pequenos. Embora a CAP tenha buscado incluir pequenos produtores, a heterogeneidade social diluiu um pouco a força monolítica do movimento inicial. Pequenos agricultores de zonas onde não houve reforma agrária começaram a ter outras preocupações (preços, crédito agrícola, etc.), afastando-se da questão ideológica pura. Dessa forma, a coesão diminuiu e o ímpeto unificado arrefeceu. Nas palavras de estudiosos, “as pré-condições estruturais de conflito estavam lá, mas precisavam dos atores para lhes dar sentido”; uma vez removido o catalisador (ameaça comunista), as clivagens internas puderam fragmentar a mobilização.
Apropriação política e esvaziamento da espontaneidade: Por fim, é preciso notar que o caráter espontâneo e popular que dera legitimidade a Rio Maior foi aos poucos substituído por uma estrutura mais hierarquizada e politizada (a CAP, filiações partidárias de líderes, etc.). Isso gerou algum desencanto em bases locais. O PCP e a esquerda passaram a acusar a CAP de ser controlada por partidos de direita e ex-régime, tentando tirar-lhe a aura popular. Essa “usurpação pela direita” no discurso público (mesmo que não inteiramente verdadeira) conseguiu distanciar setores centristas ou menos politizados. A partir de 1977, a CAP era vista já não como um movimento social difuso, mas como mais um parceiro institucional e, por seus opositores, como um “símbolo da reação”. Essa mudança de imagem pode ter inibido adesões posteriores de quem, em 1975, apoiara o movimento apenas para salvar a democracia, não para se alinhar a agendas partidárias de direita. Em resumo, a perda do caráter apartidário e local contribuiu para a diminuição do fervor inicial.
Em conclusão, o movimento dos agricultores teve êxito ao atingir rapidamente seus objetivos táticos – impedir a ocupação comunista, influenciar a queda do governo radical e garantir voz nas reformas políticas – o que paradoxalmente eliminou o fator mobilizador que o sustentava. Consolidada a democracia pluralista, a luta continuou em outros fóruns e moldes, mas o “espírito de Rio Maior” enquanto levantamento popular arrefeceu, entrando para a história como um episódio irrepetível da defesa da liberdade num contexto revolucionário específico.
V. Contexto Internacional: A Influência Soviética e a Guerra Fria em Portugal (1975)
Para compreender plenamente o episódio de Rio Maior, é crucial inseri-lo no quadro geopolítico da Guerra Fria. Em 1975, Portugal tornou-se um inesperado campo de disputa entre Leste e Oeste. A forte presença do PCP no processo revolucionário levantou temores de que o país – membro fundador da NATO – pudesse tornar-se a primeira “peça do dominó” comunista na Europa Ocidental desde a Segunda Guerra. Essa conjuntura internacional influenciou, ainda que indiretamente, os eventos locais e as percepções dos atores internos.
O PCP e a ideologia pró-soviética
O Partido Comunista Português, liderado por Álvaro Cunhal, era um dos partidos comunistas mais ortodoxos do Ocidente. Cunhal vivera longos anos exilado em Moscovo e o PCP mantinha relações fraternas estreitas com o Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Ideologicamente, defendia a implantação em Portugal de uma “democracia popular” de tipo socialista, convergente com o modelo soviético do Leste Europeu (ainda que retoricamente falasse numa via portuguesa para o socialismo). Em 1975, o PCP participou nos governos provisórios, mas, insatisfeito com a partilha de poder, procurou alavancar os movimentos de massas (comissões de trabalhadores, ocupações agrícolas, comités populares de bairro) para criar um poder paralelo revolucionário. Essa estratégia tinha o claro apoio de Cunhal e do aparelho partidário, que estavam determinados a “não deixar escapar a conquista da ditadura do proletariado” – como acusavam seus detratores.
A influência soviética sobre o PCP manifestava-se de várias formas. Financiamento e assessoria: Relatórios da CIA indicavam que já em 1974 havia sinais de que os soviéticos financiariam a campanha do PCP para a Constituinte de 1975, disponibilizando fundos maciços para propaganda e organização sofisticada. De fato, estimou-se que o PCP tinha recursos muito superiores aos dos seus rivais nas campanhas – algo atribuído a apoio do “ouro de Moscovo”. Além disso, enviados do PCUS e de outros partidos comunistas visitaram Lisboa para aconselhar Cunhal. Coordenação política: Em meados de 1975, a União Soviética acompanhava atentamente a crise portuguesa. Um memorando de inteligência dos EUA de julho de 1975 nota que “as ações recentes dos soviéticos sugerem que Moscovo, que observa cuidadosamente a situação, partilha da inquietação do PCP” perante a contra-ofensiva dos moderados. Ou seja, o Kremlin estava alarmado com a possibilidade de recuo da revolução e apoiava os esforços de Cunhal para consolidar o poder. O PCP, por sua vez, espelhava a linha soviética: defendia a permanência de Portugal no Movimento dos Não Alinhados (Cunhal tinha reservas sobre sair da NATO de imediato, o que coincide com a prudência soviética em não forçar um confronto direto naquela etapa), mas ao mesmo tempo integrava a propaganda do Bloco de Leste.
Atuação dos serviços secretos: Muito tem sido especulado sobre o papel do KGB em Portugal. Arquivos sugerem que a estação do KGB em Lisboa esteve bastante ativa durante 1974-75, estabelecendo contactos com oficiais do MFA (em especial da 5ª Divisão, encarregada da informação e propaganda) e fornecendo conselhos estratégicos ao PCP. É conhecido, por exemplo, que ViktorKulikov, um alto militar soviético, visitou Portugal e que relatórios do leste exortavam os comunistas portugueses a se prepararem para um eventual confronto armado. No caso específico de Rio Maior, não há evidências diretas de envolvimento do KGB – seria improvável num acontecimento tão localizado. Porém, não deixa de ser relevante notar que a inteligência militar do MFA (SDCI) rotulou as zonas sob controle dos agricultores de “zonas de poder reaccionário” inalcançáveis à autoridade de Lisboa, e essa informação certamente interessou aos conselheiros soviéticos (afinal, demonstrava as dificuldades da “via revolucionária”). Moscovo terá aconselhado prudência ao PCP, para evitar um banho de sangue que prejudicasse a imagem internacional da URSS numa altura delicada (Conferência de Helsínquia, julho de 1975, sobre segurança europeia). Ainda assim, telex diplomáticos americanos relatavam que se os comunistas parecessem prestes a vencer em Portugal, a URSS poderia intensificar o apoio, fornecendo dinheiro e material (embora dificilmente tropas, para não provocar represália NATO).
Em suma, a ideologia do PCP era claramente pró-soviética, e isso alimentou os receios internacionais e domésticos. Os agricultores de Rio Maior acreditavam piamente que lutavam contra a instauração de um regime ao estilo soviético (coletivização forçada, partido único, etc.). Nas entrevistas conduzidas em 2012, Nazaré Gomes e outros confirmaram que temiam uma ditadura comunista em Portugal nos moldes das de Leste. Essa convicção foi um motor psicológico poderoso. Por outro lado, a proximidade PCP-URSS ofereceu munição propagandística: panfletos clandestinos distribuídos no Norte em 1975 clamavam “Não queremos o modelo soviético aqui” e equiparavam o PCP a um instrumento estrangeiro. Em resumo, a sombra de Moscovo pairava sobre o confronto em terras ribatejanas – ainda que indiretamente, moldou as motivações de uns e as justificações de outros.
Receios internacionais e ações dos EUA/NATO
Do lado ocidental, os acontecimentos portugueses eram acompanhados com apreensão. Os Estados Unidos, em particular, viam a ascensão comunista em Portugal como um potencial abalo no equilíbrio da NATO. O Secretário de Estado Henry Kissinger era notoriamente pessimista quanto a Portugal, chegando a considerar que Soares (PS) seria um “Kerensky” incapaz de travar os bolcheviques (Cunhal). Washington preparou-se para cenários extremos: numa reunião a 22 de janeiro de 1975, Kissinger e o Secretário de Defesa James Schlesinger discutiram que “há 50% de chance de perder Portugal” e revelaram que o Pentágono tinha um plano de contingência para “tomar os Açores” se um regime comunista assumisse o poder em Lisboa. Essa última informação, mantida secreta por décadas, mostra o nível de seriedade com que a hipótese de Portugal sair da órbita ocidental era tratada – os Açores, pela sua base aérea estratégica (Lajes), seriam ocupados pelos EUA para não caírem sob influência adversária.
A CIA, por seu turno, intensificou as ações encobertas. Documentos desclassificados revelam que já em 1974 o 40 Committee (painel da Casa Branca para operações secretas) aprovou um programa para apoiar forças políticas centristas em Portugal e enfraquecer o PCP. Esse programa envolvia financiamento clandestino a partidos como o PS e o PPD através de intermediários europeus (Alemães, Britânicos, etc.), treinamento de organizadores de campanha e apoio a oficiais moderados no MFA. General Vernon Walters, da CIA, visitou Lisboa em 1974 para avaliar a situação e pavimentar essa intervenção. Em 1975, conforme a crise se adensava, a espionagem americana enviava constantes alertas: no President’sDailyBrief de 25 de Julho de 1975 (informação presidencial diária), a CIA relatava que “Gonçalves ainda tem mandato para formar novo governo mas enfrenta oposição; comunistas armam-se e há risco de confrontos; moderados podem agir em breve com apoio do Presidente”. Essa previsão praticamente narra o que ocorreria no mês seguinte.
Como os acontecimentos de Rio Maior se encaixam nisso? Para os americanos e aliados, eles foram vistos a princípio como um sinal encorajador de que a maré podia estar a virar. Um relatório da CIA de 18 de Julho de 1975 refere “um novo vigor dos moderados” e “tendência crescente de acusar Gonçalves e os comunistas de tentarem controlar o país”, o que está em linha com a repercussão de Rio Maior (que, de fato, acusava exatamente isso). A inteligência alertava também para o “considerável potencial de violência” e civis armados, apontando que grupos de direita no exílio poderiam achar chegado o momento de tentar voltar ao poder – clara alusão a Spinola/MDLP. Ou seja, Washington percebia que se criara uma “linha de batalha” na política portuguesa, com dois lados dispostos ao choque, e que a situação caminhava para um desfecho. Em tal cenário, os protestos rurais eram um elemento a ser apoiado nos bastidores, pois enfraqueciam o PCP e justificavam a necessidade de ação moderada. Não surpreende que a diplomacia americana tenha intensificado contatos com Soares e Melo Antunes no verão, assegurando-lhes que a ajuda ocidental viria caso conseguissem segurar Portugal no campo democrático.
A Europa Ocidental também agiu: Social-democratas alemães e a Internacional Socialista auxiliaram financeiramente o PS (Soares) e sindicatos livres; o governo francês (Giscard) e britânico (Wilson) colaboraram discretamente. Inclusive, subsídios secretos do SPD alemão e do Partido Trabalhista britânico chegaram ao PS para campanhas anticomunistas. A coordenacão ocidental, articulada por Kissinger, visava isolar o PCP internamente e dissuadir a URSS de qualquer aventura. A certa altura, ponderou-se até a expulsão de Portugal da NATO caso os comunistas tomassem o governo.
Com a vitória dos moderados em Novembro, tanto EUA quanto URSS respiraram aliviados: evitou-se uma guerra civil. A CIA e as potências ocidentais saudaram o 25 de Novembro como “vitória da democracia”, enquanto a URSS se reconformou com um PS no poder em vez do PCP (preferível a perder Portugal por completo para o bloco ocidental ou arriscar uma intervenção direta). De todo modo, Portugal 1975 tornou-se estudo de caso de “guerra fria por procuração”: sem tropas soviéticas ou americanas no terreno, mas com dinheiro, propaganda e apoio indireto influenciando os atores locais.
Para a nossa análise, a influência soviética e o contexto global clarificam por que os agricultores de Rio Maior agiram com tamanha determinação: acreditavam que lutavam não só contra uns vizinhos comunistas, mas contra um plano coordenado apoiado pela URSS para colocar Portugal atrás da “Cortina de Ferro”. Essa convicção amplificou a urgência da reação. Por outro lado, do prisma histórico, podemos ver Rio Maior como uma pequena peça do xadrez global – o início de uma série de “contra-ataques” que ajudaram a assegurar que Portugal se mantivesse no campo ocidental, algo que Washington considerava vital (ao ponto de, como vimos, ter um plano militar de contingência). Em suma, os ecos da influência soviética e da resposta ocidental ressoam no episódio: ele fez parte do capítulo português da Guerra Fria, mesmo acontecendo nas pacatas ruas de uma vila ribatejana.
VI. Legado e Perspetivas Atuais (1975–2025)
Passados 50 anos, o episódio de 13 de Julho de 1975 em Rio Maior continua a ser lembrado, embora de forma distinta conforme o quadrante político. Neste capítulo final, abordamos a memória institucional do acontecimento – como é celebrado ou evocado – e analisamos como alguns desafios atuais do mundo rural em Portugal se conectam (ou contrastam) com aquelas lutas de 1975. Também examinamos a reação da sociedade portuguesa contemporânea a esse legado, num país hoje democrático e integrante da União Europeia.
Memória Institucional e Comemorações
Em Rio Maior, o Dia 13 de Julho rapidamente ganhou estatuto simbólico. Como mencionado, de 1976 a 1985 foi feriado municipal (“Dia do Agricultor Livre”). Durante essa década, a data era celebrada com cerimónias oficiais, romagens ao local do antigo Grémio e eventos pela Confederação dos Agricultores. Contudo, após 1985 (coincidindo talvez com mudanças políticas locais – a autarquia pode ter passado para mãos socialistas ou comunistas, que revogaram o feriado), o 13 de Julho deixou de ser feriado municipal. Ainda assim, permaneceu na toponímia (Avenida 13 de Julho) e na memória coletiva local.
Nos últimos anos, associações locais têm procurado reviver essa memória. Em 2023, por exemplo, o jornal Região de Rio Maior publicou uma reconstituição detalhada intitulada “13 de julho 1975: os agricultores unem-se em Rio Maior”, destacando o orgulho local pelo feito. Em 2024, por ocasião dos 49 anos do 25 de Novembro, houve em Rio Maior uma conferência e Joaquim da Nazaré Gomes foi convidado a contar em primeira pessoa a história, reforçando o papel de Rio Maior como “fronteira entre esquerda e direita” e o lugar onde se deu “o sinal necessário” para a libertação.
Preparando o marco de meio século, está em curso uma verdadeira rescuperação comemorativa. No domingo, 13 de Julho de 2025, Rio Maior planeja celebrar os 50 anos do “Dia do Agricultor Livre” com pompa. A programação anunciada inclui concentração e desfile de tratores pelas ruas, descerramento de uma placa alusiva no Jardim Municipal e uma sessão solene com entidades oficiais. Haverá ainda homenagem aos agricultores falecidos (um minuto de silêncio) e em especial a Adelino da Costa Bernardes, figura local de 1975 que já citamos. Esses eventos têm o apoio do Município de Rio Maior, da Cooperativa Agrícola local e da APARRM (Associação dos Produtores Agrícolas da Região de Rio Maior), sinalizando um consenso local em torno da importância histórica do acontecimento.
Paralelamente, a nível nacional, a CAP – Confederação dos Agricultores de Portugal também se mobiliza para marcar a data. A CAP assinala 2025 como seu 50º aniversário, pois considera Rio Maior/Novembro de 1975 a sua génese. Em comunicado oficial, a CAP afirma que “nesse dia 13 de julho de 1975… centenas de agricultores uniram-se… num gesto de firmeza e coragem que se tornou símbolo da defesa dos direitos do setor e da dignidade da agricultura nacional”. Reconhece que aquele levantamento foi fundamental para estabilizar o processo democrático e consolidar a democracia em Portugal, e lembra que “poucos meses depois, precisamente em Rio Maior a 25 de novembro de 1975, era fundada a CAP”. No domingo comemorativo de 2025, a CAP juntar-se-á às entidades riomaiorenses na celebração, sublinhando “a importância contínua da agricultura no desenvolvimento do país”. O tom é claramente de exaltação positiva do legado – o 13 de Julho é visto como um “Dia de afirmação dos Agricultores” que libertou o setor de um jugo ideológico.
Essa narrativa institucional – tanto local quanto da CAP – pinta o evento como património de luta pela liberdade. No entanto, importa referir que a memória não é unânime. Para o PCP e setores da esquerda, o 13 de Julho de 1975 permanece registrado negativamente, associado a violência reacionária e anti-democrática. Nos materiais do PCP, como a obra de Cunhal citada, aquele dia é apresentado como início de uma onda terrorista que visou destruir sedes de partidos legais e travar as conquistas revolucionárias. Até hoje, o PCP recorda as vítimas dessas agressões e minimiza a ideia de espontaneidade popular. Por isso, dificilmente veremos figuras ou autarquias comunistas a aderir a comemorações elogiosas desse episódio. Pelo contrário, em 2015 (40 anos) e 2025 (50 anos), a imprensa ligada ao PCP tende a publicar artigos relembrando “o verão quente – a campanha terrorista da direita” para contrapor à narrativa da CAP.
A nível académico e museológico, o tema tem despertado interesse. O Centro de Documentação 25 de Abril (Universidade de Coimbra) guardou teses e testemunhos orais sobre Rio Maior (utilizámos aqui a de Tiago Gil de 2012). Não surpreenderia se uma exposição ou colóquio histórico vier a ser organizado em Santarém ou Rio Maior por ocasião do cinquentenário, para debater o significado do evento. Ao mesmo tempo, o Arquivo RTP e a agência Lusa possuem registos de 1975 – possivelmente entrevistas ou reportagens de então – que poderão ser recuperados e difundidos na efeméride. Essa reavaliação permite inserir a memória local no contexto mais amplo da Revolução.
Em resumo, a memória institucional de Rio Maior 1975 hoje é dual: celebrada com orgulho pelos herdeiros (CAP, comunidade local) como uma vitória da liberdade, e lembrada com amargura pela esquerda como início de uma contra-revolução violenta. Contudo, no imaginário histórico nacional, a versão vitoriosa acaba por prevalecer, já que o regime democrático português foi o resultado do triunfo daqueles (os agricultores inclusive) que se opuseram a um rumo totalitário. Assim, é provável que em 2025 a Assembleia da República ou outras instituições façam menção elogiosa ao contributo dos agricultores na defesa da democracia, ainda que o façam de forma genérica para não melindrar sensibilidades partidárias.
Desafios Atuais do Campo Português e Eco do Passado
Os problemas que mobilizavam os agricultores em 1975 giravam em torno da propriedade da terra, das estruturas corporativas e da influência comunista no campo. Hoje, em 2025, o contexto é muito diferente. Os desafios do setor agrícola e do mundo rural em Portugal passaram a ser outros: a produtividade e competitividade, a sustentabilidade ambiental, a renovação geracional e a coesão do território.
Algumas questões concretas que dominam a agenda atual:
Reforma Agrária e Estrutura Fundiária: Este deixou de ser um tema fracturante como em 1975. Após a Lei Barreto de 1977 (que travou a reforma agrária) e a entrega de indemnizações aos ex-proprietários (processo concluído em 2000), a grande maioria das terras ocupadas voltou a mãos privadas ou foi integrada em cooperativas voluntárias. Hoje, fala-se mais em ordenamento agrário do que em reforma – por exemplo, o emparcelamento de minifúndios no Norte ou a gestão eficiente do regadio no Alqueva. A antiga clivagem latifúndio vs minifúndio ainda existe em termos regionais, mas já não gera conflito ideológico. Se há algum eco de 1975, seria nas tensões entre pequenos produtores e grupos empresariais: atualmente, grupos agroindustriais (muitos estrangeiros) compram extensas terras no Alentejo e Ribatejo para olival intensivo, amêndoa, etc., o que causa atrito com agricultores tradicionais. Porém, estes conflitos expressam-se em termos de sustentabilidade e concorrência, não mais de luta de classes. A CAP hoje tanto representa pequenos como grandes, mas enfrenta o desafio de equilibrar interesses divergentes dentro do setor.
Desenvolvimento Rural e Coesão Territorial: Um dos maiores problemas atuais é a desertificação humana do interior rural. Muitas aldeias perderam população jovem, ficando apenas idosos. A atividade agrícola decaiu em áreas de minifúndio, levando ao abandono de terras (um fator que contribui, por exemplo, para incêndios florestais recorrentes). A coesão territorial implica reduzir as disparidades entre litoral urbano e interior rural – um desafio reconhecido nas políticas públicas. Em 1975, curiosamente, a mobilização dos agricultores do Norte também tinha um quê de afirmação do interior face ao poder emanado de Lisboa. Hoje, já não existe hostilidade política entre interior e capital, mas permanece a sensação de esquecimento. Iniciativas contemporâneas buscam inverter isso: programas de Desenvolvimento Rural cofinanciados pela UE (como o PRODER, PDR2020) investem em modernização agrícola, jovens agricultores, vias de escoamento, internet no campo, etc. Há esforços para promover o turismo rural, os produtos locais com denominação e outras formas de revitalizar o rural. Entretanto, a eficácia é moderada – Portugal continua muito litoralizado. O legado de 1975, quando agricultores se uniram para ter voz, pode inspirar hoje movimentos de cidadania rural exigindo melhores serviços (saúde, transportes) no interior, embora agora sem qualquer tonalidade ideológica vermelha vs. branca.
Sustentabilidade e ambiente: Esta é uma dimensão inexistente no debate de 1975 e central em 2025. As preocupações com uso sustentável da água, redução de pesticidas, adaptação às mudanças climáticas e respeito pelo bem-estar animal ganham peso crescente. Paradoxalmente, alguns dos herdeiros daqueles agricultores de 1975 hoje confrontam-se com críticas ambientalistas. Por exemplo, a CAP frequentemente posiciona-se contra certas metas ambientais europeias que julga penalizarem os produtores (como cortes em apoios a gasóleo verde, restrições a fertilizantes, limites à plantação intensiva). Há portanto novos campos de batalha discursivos, mas muito diferentes: não mais entre comunismo e capitalismo, e sim entre produtivismo e ecologia. Ainda que haja cooperação possível (agricultura sustentável, etc.), existe tensão. A sociedade portuguesa urbana algumas vezes choca com a realidade rural: temas como a caça, as touradas, a questão dos eucaliptos ou a concentração fundiária para culturas intensivas são alvo de polémica. A CAP posiciona-se como guardiã dos interesses dos agricultores também nesses debates, enquanto ONGs ambientais pedem mudanças de paradigma. Trata-se de desafios inéditos para a geração de 1975 – que lutava para aumentar a produção e alimentar o país sem se preocupar com pegada carbónica.
Modernização e políticas europeias: A entrada de Portugal na CEE (1986) transformou a agricultura nacional, com a Política Agrícola Comum (PAC) a ditar grande parte das regras. Subsídios, quotas e regulamentações europeias passaram a ter mais impacto no quotidiano agrícola do que as disputas ideológicas internas. Muitos agricultores beneficiaram de fundos estruturais para investir, mas outros não resistiram à concorrência aberta. O setor viu um êxodo: dos quase 25% da população ativa na agricultura em 1975 reduziu-se para menos de 5% hoje. Esse processo trouxe prosperidade a uns e abandono a outros. A CAP teve de se adaptar – de movimento reivindicativo nacional passou a lobby em Bruxelas, lutando por melhores condições na PAC para Portugal. Hoje, por exemplo, discute-se a PAC pós-2023 que introduz ecossistemas e condicionalidades ambientais; a CAP negoceia para não prejudicar demasiado os rendimentos dos agricultores. Em suma, o foco mudou de “livrar-se do comunismo” para “conseguir fundos e condições justas na UE”. Esse é o novo terreno de luta do associativismo agrícola.
Tecnologia e inovação vs tradições rurais: Outro desafio atual é a incorporação de inovação tecnológica (agricultura 4.0, digitalização) que pode aumentar produtividade mas também excluir os produtores menos qualificados ou idosos. A valorização de técnicas tradicionais e saberes locais enfrenta a pressão por eficiência global. O setor busca equilibrar qualidade e tradição (vinhos DOC, azeites DOP) com quantidade e exportação. Nesta seara, a CAP e cooperativas têm projetos de formação, mas há um longo caminho. A dificuldade em atrair jovens para a agricultura é real – contrasta com 1975, quando havia uma massa crítica de jovens lavradores dispostos a pegar na moca para defender a terra. Hoje muitos filhos de agricultores não querem seguir o oficio. Curiosamente, assiste-se a um nicho de neo-rurais (jovens urbanos que vão para o campo por estilo de vida ou negócio orgânico) que trazem novas dinâmicas, mas esse é um fenómeno minoritário ainda.
Em termos de sociedade portuguesa e sua reação a essas questões rurais, pode-se dizer que há maior conscientização e respeito pelo setor hoje do que há algumas décadas. A pandemia COVID-19, por exemplo, fez muita gente dar valor à produção local e à segurança alimentar. Por outro lado, persistem desconhecimentos e estereótipos mútuos: os urbanos veem por vezes o mundo rural como atrasado ou subsidiodependente; os rurais sentem-se incompreendidos e regulados por quem “não sabe plantar um alface”. Eventos históricos como o de Rio Maior em 1975 lembram que os rurais já tiveram um peso político decisivo. Atualmente, esse peso é menor demograficamente, mas politicamente ainda relevante – basta ver que partidos do arco governativo evitam afrontar diretamente a CAP ou os interesses agrícolas (teme-se protestos como os dos coletes amarelos em França). Houve até a emergência de um novo partido de direita populista (CHEGA) com algum apoio em meios rurais e que agita a bandeira contra o “abandono do interior”, ecoando queixas antigas.
No plano cultural, a sociedade portuguesa dos nossos dias olha para 1975 com um misto de fascínio e alívio. Fascínio pela energia participativa (nas cidades e campos); alívio por ter terminado sem guerra civil. A reconciliação nacional após o PREC (Processo Revolucionário) foi relativamente bem-sucedida. Hoje, comunistas e conservadores coexistem pacificamente no Parlamento. Assim, quando se fala de Rio Maior 1975 a um público jovem atual, é preciso contextualizar: para eles, parece quase incrível que compatriotas se engalfinhassem por ideologia. A maioria dos portugueses nascidos depois de 1980 cresceu num ambiente estável, sem polarização comparável. Nesse sentido, explicar o episódio a pessoas de hoje envolve sublinhar a dramaticidade daqueles meses – o receio real de perder liberdades – para que se entenda a paixão com que os agricultores agiram.
Por outro lado, certas questões de 1975 continuam pertinentes de forma transformada. A essência do conflito era quem decide os destinos e quem tem direito à terra. Hoje, discute-se por exemplo o estrangeiramento de terras agrícolas (fundos estrangeiros comprando grandes extensões) e a soberania alimentar (Portugal importa cerca de 40% dos alimentos que consome). São discussões modernas que, em última instância, remontam ao mesmo fulcro: manter a agricultura nacional viável e em mãos de quem vive no país. Assim, embora mudou o vocabulário, o sentimento de “defesa da nossa agricultura” que animou o Dia do Agricultor Livre não está morto – apenas se manifesta de outras formas, como campanhas “Compre o que é nosso” ou protestos contra tratados comerciais que prejudiquem produtores locais.
Reflexão final sobre o legado democrático
A sociedade portuguesa no seu conjunto viu consolidar-se, após 1975, um consenso democrático centrista. A memória dos confrontos do Verão Quente funcionou como vacina para muitos: as gerações subsequentes aprenderam o valor da moderação e do diálogo para resolver conflitos sociais, em vez da violência. Os agricultores de Rio Maior, que outrora pegaram em paus, mais tarde passaram a negociar nas Comissões de Concertação Social. Os sindicalistas comunistas que outrora planearam ocupações aceitaram depois o pluralismo sindical.
O episódio de Rio Maior e similares contribuíram, paradoxalmente, para a democratização plena: ao sinalizarem limites à radicalização, forçaram um compromisso histórico. Em 1977, o PCP finalmente aceitou o jogo democrático dentro do possível, e PS/PSD assumiram alternância normalizada. O trauma dos excessos daquele período foi sendo sublimado em políticas inclusivas. Por exemplo, a Constituição de 1976 incluiu no preâmbulo referências tanto à defesa da democracia representativa quanto ao objetivo de realizar reformas econômicas visando a igualdade – ou seja, incorporou algo das aspirações de ambos os campos.
Hoje, a distância temporal permite analisar 13 de Julho de 1975 sem maniqueísmo: nem só “heróis da liberdade” nem só “terroristas reaccionários”, mas cidadãos num contexto revolucionário específico, reagindo às circunstâncias excepcionais. A lição que muitas vezes se extrai – e que como analistas devemos destacar – é a de que as democracias são frágeis quando polarizadas. Em Rio Maior, a ausência de canais institucionais para resolver a disputa (porque o Estado estava fragilizado) levou ao confronto direto. Atualmente, felizmente, Portugal dispõe de mecanismos legais e dialógicos. Se agricultores têm queixas (digamos, contra uma lei ambiental), levam-nas a comissões parlamentares, fazem manifestações ordeiras em Lisboa – dificilmente ocorrerá um novo “Rio Maior” literal. Isso é sinal de amadurecimento democrático.
Contudo, o legado serve de aviso: as tensões entre cidade e campo, entre modelos de desenvolvimento, não devem ser ignoradas, ou podem agravar-se. A coesão nacional requer integrar os rurais nas decisões. Rio Maior 1975 lembra que quando uma parcela significativa da população se sente ameaçada e sem voz, ela pode explodir em ação coletiva. Essa mensagem ecoa para além do tempo e local de origem.
Conclusão
O “dossiê” do 13 de Julho de 1975 em Rio Maior apresentado neste relatório procurou detalhar os eventos, protagonistas, impactos e significados desse episódio singular da história contemporânea portuguesa. Cronologicamente, vimos como uma tentativa de ocupação do Grémio da Lavoura por elementos comunistas desencadeou uma enorme mobilização espontânea de agricultores, que culminou na destruição de sedes partidárias e numa inédita contra-ofensiva popular à esquerda radical. Identificámos as figuras-chave envolvidas: líderes locais corajosos como Joaquim da Nazaré Gomes e José Manuel Casqueiro, que articularam a resistência e depois a levaram às mesas de negociação do poder, bem como atores nacionais – de Cunhal e Vasco Gonçalves a Soares e Kissinger – cujas ações e preocupações formaram o pano de fundo do drama. Analisámos o porquê do movimento ter ganho tanta amplitude (medo genuíno, estrutura prévia, apoio tácito de instituições) e também por que se dissipou (objetivos alcançados, institucionalização via CAP, novo contexto pós-Novembro).
No contexto internacional, situámos Rio Maior no tabuleiro da Guerra Fria, mostrando que a “influência soviética” não era abstrata – o PCP tinha apoio de Moscovo e isso alarmou o Ocidente, levando a intervenções encobertas da CIA e outros, num jogo de pressões que certamente influenciou os desenlaces políticos de 1975. Rio Maior acabou assim por ser um pequeno bastião de resistência que contribuiu para garantir a ancoragem de Portugal no mundo livre, fato reconhecido inclusive pela CAP ao afirmar que aquele gesto firme dos agricultores ajudou a *“consolidação da democracia em Portugal”*.
Atualizando a narrativa, percebemos que o legado de Rio Maior permanece vivo sobretudo na memória local e setorial (comemorações do Dia do Agricultor Livre, honrarias aos protagonistas), mas o país que emergiu desses conflitos transformou-se profundamente. Os desafios rurais de hoje já não são disputas ideológicas de posse da terra, mas antes o combate ao abandono rural, a reconciliação entre produção e sustentabilidade, e a integração das zonas agrícolas numa economia globalizada e digital. Nesse percurso, a CAP – filha direta daqueles acontecimentos – adaptou-se de movimento de resistência a parceira institucional, mas mantém do seu “DNA fundador” a missão de defender os agricultores perante o Estado e a sociedade, ainda que os adversários agora sejam outros (normas burocráticas de Bruxelas, mercados internacionais desequilibrados, etc.).
Em perspetiva histórica, Rio Maior 13/7/1975 representa um exemplo de como, num momento revolucionário, os atores sociais podem inverter o curso dos acontecimentos quando sentem seus direitos ameaçados. Foi um ato de capacitação coletiva – camponeses que durante décadas estiveram submetidos (no Estado Novo) ou marginalizados (nos meses pós-25Abr) assumiram subitamente as rédeas do destino local e influenciaram o nacional. Esse empoderamento traduziu-se depois na criação de suas próprias estruturas (APA, CAP) para nunca mais serem apanhados desprevenidos. Pode argumentar-se que a democracia portuguesa consolidada deve algo a esses “revoltosos improváveis” – homens do campo que normalmente não fazem a história dos manuais, mas que naquele julho quente integraram as manchetes e os relatórios da CIA.
Para as novas gerações, o episódio de Rio Maior ensina a importância da vigilância democrática. Mostra que conceitos como liberdade e propriedade podem mobilizar pessoas comuns a atos extraordinários quando julgados em risco. Ensina também os perigos da polarização extrema: em 1975 quase descambou em guerra fratricida; hoje, felizmente, existem canais de mediação. O fato de Portugal em 2025 ser uma democracia estável, sem confrontos violentos, deve-se em parte às duras lições aprendidas em 1975.
Em conclusão, o 13 de Julho de 1975 em Rio Maior foi simultaneamente um fim e um começo: o fim das ilusões de uma tomada comunista fácil do poder e o começo da afirmação organizada dos agricultores na sociedade portuguesa democrática. Cinquenta anos depois, honrar esse legado significa reconhecer o papel que aqueles cidadãos desempenharam na defesa da liberdade e perceber que muitos dos valores por eles invocados – iniciativa individual, respeito pela propriedade e simultaneamente pelo trabalho, equilíbrio entre Estado e sociedade civil – continuam relevantes para enfrentar os desafios do presente e do futuro.














