

Por João Maurício
Há setenta anos, nas velhas casas, nas velhas e rudimentares lojas da Benedita – onde os balcões de madeira estavam gastos pelo tempo – era natural ouvir-se a expressão “Pago-lhe depois da Feira de Rio Maior”. Eram tempos em que a seriedade e a palavra dada estavam no top. Uma época dura e austera. Os atuais jovens não fazem ideia do que isso era. Ainda bem! A maioria das pessoas viviam com muitas dificuldades. Por isso, os beneditenses, ano após ano, tinham na Feira das Cebolas um marco temporal.
Os sapateiros da Benedita passavam por quatro feiras, no Verão, onde encaixavam dinheiro: o 15 de Agosto nas Caldas da Rainha, a Feira de S. Bernardo, de Alcobaça, seguia-se a Feira das Cebolas de Rio Maior, em setembro e a lista terminavam com as Festas da Nazaré, também em setembro. Sobrava sempre um tempinho para ir à tourada no Sítio da Nazaré, ver o Manuel dos Santos, o Diamantino Viseu, o João Branco Núncio e, claro, os Forcados de Santarém.
Era nessas terras que se escoava a “obra”, ou seja, o calçado, principalmente as famosas botas de elástico, sandálias de senhora e os chamados “sapatos domingueiros”, usados nos casamentos, nos dias de festa e ao domingo, quando se ia à missa.
Muito dura era a vida dos sapateiros que trabalhavam muitas vezes noite fora, à luz do “ Petromax”, mesmo nas longas noites de invernia.
Quando terminava a feira riomaiorense já estes artesãos do calçado tinham pecúlio para pagarem as dívidas adquiridas nas lojas de tecidos, de solas e cabedais e nas mercearias.
A Feira das Cebolas tinha uma ruralidade muito vincada, própria dos tempos antigos. Fazia a ponte entre o Ribatejo e o Oeste que nesses dias se abraçavam. O mundo rural hoje, é completamente diferente. As transformações ocorridas em Portugal nos aspetos sociais e económicos fizeram nascer um novo tipo de comércio e apareceram novas profissões – uma evolução imparável.
Nós, apenas, sonhámos e fizemos uma viagem nostálgica a esses recuados tempos sem, contudo, sermos saudosistas nem passadistas.
Na feira, havia vendedores de água fresca, mas já não é do meu tempo a venda de capilé.
Havia, ainda, os comerciantes da “banha da cobra” que reuniam muita gente à sua volta. Possuíam o dom da oratória e conseguiam vender muito o elixir que seria capaz de curar todos os tipos de maleitas. Eram raros os mais esclarecidos que afirmavam que, afinal, o produto milagroso não era mais do que banha de porco. Não fazia mal nem bem. Algumas mulheres vendiam fruta que vinha em cestas acompanhadas da respetiva balança. Lá estavam os vendedores de cobertores – quem comprasse três, levava mais um de graça e, ainda, uma toalha de rosto.
Não podia faltar o fotógrafo que tirava fotografias” à la minute”. Trabalhava com uma máquina primitiva de fole instalada numa caixa de madeira. Tirava os retratos das famílias que vinham à feira. Nesses dias, já o verão ia alto e Rio Maior fervilhava de vida.
As carreiras dos Capristanos traziam muita gente dos concelhos vizinhos. Ia-se ao Circo e as crianças adoravam os palhaços.
A história da Feira das Cebolas perde-se na poeira do tempo e ficou na memória do grande Ruy Belo que a eternizou.
Com tantos altos e baixos, atravessou muitas gerações: passou pela Monarquia, viu a Guerra Civil entre liberais e miguelistas, observou a penúria causada pelas Invasões Francesas, sofreu com os horrores da Primeira Grande Guerra (1914-1917), assistiu à crise geral da 1ª República (1910-1926), viveu a Ditadura, recebeu a Democracia, definhou com a pneumónica.
Estes apontamentos soltos são histórias do passado que tinham de ser escritas para que as memórias não se percam. É um modesto contributo para olharmos o futuro, esperando pelo que há de vir. Sempre com a esperança de um tempo melhor!
Nota final – esta crónica, inspirada em realidades passadas, é ilustrada por uma reprodução das célebres botas de elástico, da autoria do conhecido artista plástico riomaiorense, José Estrela.
Agradeço-lhe mais vez ter feito, a meu pedido, este belo desenho. Foi retirado do meu livro “Os Sapateiros da Benedita e a sua história”, obra apreciada por muitos e esquecida por alguns que não o deveriam ter feito. É a própria ambiguidade do ser humano que, às vezes, é imprevisível nas suas reações.















