Por João Maurício
Véspera de Natal de 2023. O espaço comercial fervilhava de vida e nas pessoas notava-se aquele lado elétrico próprio desta quadra, em que todos ficam mais simpáticos. Era um take away. Esta maneira, bem nossa, de usar os estrangeirismos! A fila era longa e aborrecida, porque demorada.
Antes de mim, uma mulher jovem e esbelta, depois de mim, um velhote gasto pela vida, com o cabelo mais do que branco. O silêncio de alguns minutos levaram-me a concluir que era tímido. Mas, depois meteu conversa. Foi-me dizendo que era um solitário, sem família. Estranhei, abrir a sua alma a quem não conhecia. Que era uma pessoa de poucas palavras, mas que, nessa altura de Natal, alterava a sua conduta.
Este homem simples estava na guerra no Natal de 1961. Pedi-lhe autorização para apontar num talão de extrato de multibanco, os tópicos do que me ia dizendo: “Nasci no dia de Natal de 1937. Amanhã faço 86 anos”. Já tinha cumprido o serviço militar, mas quando rebentou a guerra fui chamado outra vez. Foram cinco anos de tropa, duros como as pedras da calçada”.
A jovem mulher envolveu-se na conversa, apresentando-se como ex-militar. Manuel esteve nas zonas “quentes” da guerra, nomeadamente Nambuangongo. E de cor, recitou o célebre poema de Manuel Alegre “As Colunas Partiam de Madrugada”: «As colunas partiam de madrugada/partiam para o norte, partiam para a morte/partiam de Luanda, flor pisada/levavam a morte de Luanda para o norte/ …. ».
Falou-nos das poucas noites passadas em Luanda que eram alegres, de ter visto as primeiras enfermeiras paraquedistas em plena guerra, da metralha do M.P.L.A., assistiu aos bombardeamentos dos aviões caças F84, vindos, com urgência, da Base Aérea da Ota. Manuel recordou os colegas mortos que foram sepultados fora dos cemitérios, por não existirem nas zonas de guerra.
Falou-nos dos meses seguidos de infinitas rações de combate. Inevitavelmente, ervilhas com chouriço.
Naquele dia de Natal de 1961 estava no mato, numas instalações mais que precárias. Dia do seu aniversário. Estava com 24 anos. A missa foi celebrada pelo tenente que era o capelão.
Depois o almoço, finalmente, com um acepipe. O segredo foi guardado até à última hora – o cabrito tinha chegado dias antes. Uma delícia. A partir daí, “todos os Natais como cabrito», concluiu com estranha nostalgia.
Finalmente, chegou a nossa vez para sermos atendidos, em simultâneo, por três funcionários.
Afinal, não houve cabrito, porque o Manuel não tinha feito a encomenda antecipadamente. Uma profunda tristeza invadiu o ex-combatente. A jovem mulher que tinha encomendado 1,5 Kg de cabrito, ouviu o lamento do Manuel e dispensou-lhe 0,5 Kg.
E foi, então, que a alegria daquele homem explodiu como fogo de artifício colorido.
Comovido, foi sentido o seu agradecimento – “Foi a melhor prenda de Natal da minha vida”. E repetiu três vezes “muito obrigado”.
É este o espírito do Natal Para mim, foi uma graça ter assistido a esta cena de fraternidade e humildade.