Por João Maurício
José Timóteo de Matos foi meu colega de trabalho, em 1976, na Escola Preparatória da Benedita, onde era presidente do Conselho Diretivo.
Diplomata, divertido, inteligente, solidário, muito calmo e ponderado. Estive muitos anos sem o ver. Diziam-me que tinha uma doença, mas sempre pensei que fosse algo passageiro.
No Outono de 2013, contactou-me e pelo arrastar da voz percebi que a situação era complicada. Telefonou-me para se despedir, porque afinal o fim estava próximo. Disse-me, então, que acabara de escrever o livro “Nada a Temer, Excepto as Palavras” e que iria providenciar para que a obra me chegasse às mãos.
Despediu-se com um “até sempre”. Frase dura e melancólica que ficou a pairar no ar. Nunca me esqueci. Partiu poucos meses depois.
Na altura, recomendou-me que lesse o capítulo dedicado ao Tibúrcio. Foi o que fiz e, por isso, vou contar.
Todos conheciam a figura deserdada pela vida, amigo dos cães e dos gatos. Foi alguém que nunca teve trabalho fixo. Tornou-se engraxador, mas com pouco jeito. Tibúrcio levou muitos pontapés da vida e, mais tarde, optou por fazer recados.
Ia à boleia até Rio Maior e Caldas da Rainha. Por cá, ainda, há quem se lembre dele. Tinha vivido no Asilo de Alcobaça, mas de lá fugiu, porque “galinha do campo, não quer capoeira”. Quando tinha algum dinheiro, ia à taberna “O Beco do Grilo” matar a sede. Partiu, mas não foi notícia de jornal. A verdade é que tinha desaparecido um homem simples e bom, sem maldade.
José Timóteo era da área do Direito, abandonou o ensino e abriu um escritório de solicitador. Foi, aí que nasceu a sua relação com o Tibúrcio. Este passou a ser seu “funcionário”, fazer de “moço de recados”, comprar tabaco, pôr as cartas ano correio ou levar papelada a casa de algum cliente.
Um dia de muito frio, na véspera de Natal, o “patrão” mandou-lhe comprar um pacote de S.G. Gigante. Nesse dia, Timóteo foi invadido por uma particular generosidade que raramente nos visita. Tibúrcio, mentalmente, esfregou as mãos de contentamento, já a pensar no maço de tabaco que esperava receber. Afinal era Natal! O solicitador abriu cuidadosamente um maço e retirou dois cigarros, um para si e outro para o pobre homem. Da carteira, tirou uma nota de cinquenta escudos e entregou-a ao Tibúrcio, assim como os restantes dezanove cigarros. Uma vez na vida, este homem enjeitado era bafejado pela luz natalícia.
Tibúrcio, que era reservado, comoveu-se e as lágrimas correram-lhe pela face escura e soluçando disse “Obrigado. Nunca tive um Natal assim, Dê cá um abraço”. Já o humanista Raoul Follereau dizia “fazer um gesto de fraternidade gera uma cadeia indefinida de felicidade que é infinita”.
Aquele gesto foi uma verdadeira quadra de Natal. Tibúrcio era, no fundo, uma criança grande. Os seus afetos reprimidos pelas agruras da vida, naquele momento explodiram como um colorido fogo de artifício. Também, naquela noite, como em tantas outras, dormiu na entrada de um prédio, na paz do Senhor, acreditando na bondade do ser humano. Tinha chegado a hora deste homem ir descansar.
Aquela cena faz-me recordar o Natal dos Simples, imortalizado por Zeca Afonso. Tibúrcio dormia bem perto do Café do Isidro, onde três décadas antes Zeca passara muito do seu tempo e, onde compôs algumas das suas famosas canções. A existência deste ex-engraxador teria direito a uma banda mas os músicos sempre estiveram de férias.
Natal é sinónimo de mesa farta, tempo de neve lírica caindo sobre as árvores. Hoje, é sinónimo de consumismo e publicidade em doses maciças, mas é, também, um sonho que nos leva até aos doces animais do presépio e a S. Francisco. Perdemos a ingenuidade de um menino que nasceu sobre as palhinhas. Natal é como o acordar de uma esperança adormecida, é a festa religiosa que nos traz desejos de paz e solidariedade. Mas Natal é, também, submissão às fitas coloridas que são o oposto da vida real. Longe vão os tempos dos ingénuos sapatinhos na chaminé. Não há, nem haverá verdadeiro Natal, enquanto os sem-abrigo proliferam nas grandes cidades da Europa e do mundo inteiro.
Não há, nem haverá Natal profundo enquanto existirem Tibúrcios que são, no fundo, produto de uma sociedade fria, calculista e desumana.
Afinal, o que muitos de nós vamos perdendo, jamais nos será devolvido. Tibúrcio era na sua ingenuidade um símbolo da verdadeira pureza do Natal. Ele foi o exemplo máximo dos deserdados da vida!